Em 26 de maio de 2013, a 66ª edição do Festival de Cinema de Cannes concluiu com a entrega da Palma de Ouro a “La vida de Adèle” (La vie d’Adèle – capítulo 1 e 2), do tunisiano Abdellatif Kechiche. Naquele dia, o júri, presidido por Steven Soderbergh, fez algo inédito: também concedeu a Palma de Ouro (digamos honorária) às duas protagonistas do filme, Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux. O filme, que causou um escândalo por suas cenas de sexo explícito entre os dois, se mantém por conta própria e nove anos após sua estreia continua a nos falar com a mesma clareza.
A versão completa -179 minutos- de “A Vida de Adèle” (La vie d’Adèle – capítulo 1 e 2, 2013), o filme do tunisiano Abdellatif Kechiche que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, foi precedida por bastante escândalo para atrair a atenção onde quer que seja exibido. A agitação e os comentários vêm, além das reclamações sobre as condições extremas das filmagens, das sequências de sexo explícito entre as duas protagonistas, que também são duas mulheres jovens e bonitas. E realmente, as cenas são de tensão incomum para o cinema que não carrega o rótulo pornográfico, mas não constituem o centro desse filme per se, nem podem ser vistas isoladas do drama em que estão imersas.
“La vida de Adèle” nada mais é do que uma história de amor, como aquela que qualquer um de nós viveu, uma das muitas que o cinema nos mostrou durante décadas de paixões de celulóide. Kechiche quis exibir o arco completo de um relacionamento, desde a paixão instantânea, quando algo clica em nossa cabeça e não conseguimos parar de pensar naquela pessoa que conhecemos; para o outro lado do espectro emocional, quando um rompimento amargo força dois seres que compartilhavam tudo a seguirem caminhos separados. Para isso, três horas de filmagem parecem insuficientes, principalmente pela intensidade dos sentimentos que esse diretor encena para nós.
Já existe a palavra que você procurava: intensidade. Lembrando Truffaut e seu filme “A História de Adela H.” (L’histoire d’Adèle H., 1975) parece que as Adèles do cinema francês estavam destinadas a se apaixonar até a obsessão e a sofrer por isso. A do nosso filme é uma jovem estudante francesa do ensino médio que, mal explorando sua sexualidade, percebe que se sente mais à vontade com mulheres do que com homens. E um dia ele vê Emma (Léa Seydoux), uma pessoa um pouco mais velha, com cabelos tingidos de azul, na rua, e ele não consegue deixar de olhar para ela e se perguntar onde ela esteve a vida toda. Quão inadvertidamente ele vai procurá-la e encontrá-la em um bar para lésbicas e quando ele menos espera ele vai se envolver com ela de uma forma que ele nunca experimentou antes. Essa intensidade afetiva, essa paixão que ambos estão sentindo se traduz em encontros sexuais que têm a urgência do desejo, dessa coisa incompreensível que nos faz perder a cabeça e esquecer por um momento que o mundo continua a girar além do quarto em que vivemos. estamos face a face com aquele outro ser cujo corpo e cuja essência ansiamos.
O cinema sempre foi tímido quanto à representação da sexualidade na tela, a censura estrita que prevaleceu no caso de Hollywood por muitas décadas fez com que a representação fílmica do sexo fosse, na melhor das hipóteses, sublimada quando não era abertamente excluída. O cinema europeu tem tido mais liberdade nesse assunto, mas geralmente há um autocontrole para evitar uma classificação restritiva que afeta as bilheterias. Mas se o diretor Kechiche quis nos mostrar o ímpeto com que se vive o desejo entre dois seres que estão determinados a se doar um ao outro, sua abordagem não poderia ser diferente daquela que ele escolheu para ilustrar essa intimidade.
Adèle (interpretada com maestria pela jovem Adèle Exarchopoulos) e Emma se descobrem e farão o que for preciso para se satisfazer sexualmente. Kechiche simplesmente nos mostra sem ir a um confortável fade to black. Lá estão eles corpo a corpo, gemendo, tocando, lambendo, explorando os limites físicos da paixão que sentem. É impossível não sentir nada diante dessas imagens, que podem não ser feitas de propósito para excitar, mas que não impedem o espectador de sentir também a eletricidade que as duas mulheres geram. A duração e a força dessas cenas estão sempre diretamente relacionadas ao que está acontecendo com os sentimentos dos protagonistas: quando o casal começa a vivenciar o vazio e a solidão, as sequências eróticas também se extinguem, dando lugar a outro tipo de tensão, onde o remorso. , a saudade e o silêncio predominam.
Você se lembra que dois parágrafos atrás eu mencionei que os amantes esquecem que existe um mundo fora deles? Kechiche sabe disso e é por isso que nesta história tudo o que e acontece fora da esfera privada é excluído. Uma vez que Adèle estabelece um vínculo com Emma, seus colegas de escola desaparecem, depois seus pais desaparecem, a vemos amadurecendo lentamente e adotando maneiras adultas, colocando óculos, arrumando um emprego em uma pré-escola, enfrentando a vida adulta. Emma termina seus estudos de arte, começa a expor seu trabalho, enfrenta as alegrias e frustrações que isso implica. Tudo isso acontece sem que percebamos, as transições temporárias são quase imperceptíveis, os personagens secundários vão sendo abandonados pela narração sem que os percamos. Habitamos o mundo de Adèle e isso deve ser suficiente para nós.
Ela é o centro da história, seu ponto de vista é o da narração, ela é a cegada pelo amor, aquela que assume os maiores riscos; é ela que subordina a sua vida à de Emma, é ela que vai sentir o peso da solidão e será a ela que se despedirão. Claro, ela será aquela que não conseguirá esquecer, aquela que nunca se curará, aquela que tentará a todo custo recuperar o paraíso perdido. Todas as emoções humanas estão naquele lindo rosto que agora vemos implorando e chorando, e que antes víamos se emocionar, rir e se alegrar. Adèle Exarchopoulos nasceu em 1993 e sua experiência como atriz ainda é breve, mas o que ela realizou aqui é o sonho de uma diretora de cinema: ela se entregou completamente a esse papel, com uma capacidade inesperada de refletir com enorme força e credibilidade os sentimentos que a movem, as turbulências internas que a perturbam e não a deixam sozinha. Aqui ela é irmã de Isabelle Adjani –a protagonista de “A História de Adela H.”– nessa capacidade sem precedentes de expressar a dor do sentimento. Não foi por acaso que no Festival de Cannes, numa decisão nunca antes tomada pelo júri, a Palma de Ouro de melhor filme foi atribuída não só ao realizador de La vida de Adèle, mas também aos dois protagonistas. O filme é tanto dele quanto de Kechiche, que por sua vez escreveu o roteiro baseado na graphic novel de Julie Maroh Le Bleu est une couleur chaude.
Acho que a principal virtude deste filme é que a descrição dos sentimentos que vemos é tão vívida e universal que nos faz esquecer que esta é a história de um casal homossexual. O que vivenciam constitui uma herança afetiva do ser humano, independentemente de sua orientação sexual. Não me senti diante de uma história lésbica, me senti diante de uma história de amor intensa e honesta que poderia muito bem ter acontecido entre um homem e uma mulher ou entre dois homens. O que aconteceu aqui foi um frenesi apaixonado com suas consequências incluídas, encenado com tanta intensidade que sua memória ainda está comigo.